quinta-feira, 1 de abril de 2010

Nocturno

Levantou as golas do blusão de cabedal e avançou pelo passeio, ouvindo o eco dos seus passos nos portais vazios. O tráfego era diminuto e só de vez em quando os faróis de um automóvel a iluminavam por trás, projectando a sua silhueta comprida e estreita, primeiro alongada à frente dos pés e depois mais curta, oscilante e fugitiva para um dos lados, à medida que o ruído do motor aumentava atrás de si até a ultrapassar, esmagada e desaparecida a sombra contra a parede, enquanto o carro, agora dois pontos vermelhos e outros dois reflectidos sobre o asfalto molhado, se afastava rua acima.
Deteve-se num semáforo. Enquanto esperava o verde, procurou outros verdes na noite e encontrou-os nas luzes fugidias dos táxis, em semáforos ao longo da avenida, no néon distante, combinado com o azul e amarelo, de uma torre de vidro em cujo último andar, de janelas iluminadas, alguém fazia a limpeza ou trabalhava àquela hora. O verde acendeu e atravessou, procurando agora vermelhos mais abundantes na noite de uma grande cidade; mas interpôs-se o lampejo azul de um carro da polícia que passava ao longe sem que chegasse a ouvir a sirene, silencioso como uma imagem muda. Vermelho automóvel, verde semáforo, azul néon, azul lampejo... Essa seria a gama de cores, pensou, para interpretar aquela estranha paisagem, a paleta necessária na execução de um quadro que poderia ironicamente chamar-se Nocturno e seria exposto na galeria Roch. Tudo adequadamente combinado com tons de negro: negro escuridão, negro trevas, negro medo, negro solidão.
Tinha realmente medo? Noutras circunstâncias, a pergunta teria sido um bom tema de discussão académica, na agradável companhia de alguns amigos, numa divisão cómoda e aquecida, em frente de um fogão e com uma garrafa ainda a meio. O medo como factor inesperado, como consciência perturbadora de uma realidade descoberta num momento concreto embora sempre ali tivesse estado. O medo como final demolidor da inconsciência ou como ruptura de um estado de graça. O medo como pecado.
No entanto, caminhando por entre as cores da noite, era incapaz de considerar o que sentia como uma questão académica. Já sentira antes, como é óbvio, outra manifestações menores do mesmo: o conta-quilómetros que ultrapassava o razoável enquanto a paisagem desfila rapidamente à direita e à esquerda e o risco intermitente do asfalto parece uma sucessão de balas de metralhadora, como nos filmes de guerra, engolidas pelo ventre voraz do automóvel; ou a sensação de vazio, de profundidade insondável e azul ao mergulhar da coberta de um barco no alto mar e nadar, sentindo a água escorregar sobre a pele nua, com a desagradável certeza de que qualquer espécie de terra firme está demasiado longe dos pés; até mesmo outros terrores vagos que fazem parte de nós mesmo durante o sono, estabelecendo caprichosos duelos entre a imaginação e a razão, aos quais, regra geral, basta uma acto de vontade para reduzir à recordação ou ao esquecimento com um simples abrir de pálpebras para as sombras familiares do quarto.
Mas aquele medo que acaba de descobrir era diferente: novo, insólito, desconhecido até então, amadurecido pela sombra do Mal com maiúscula, inicial do que está na origem do sofrimento e da dor; o Mal que só pode ser pintado com negro escuridão, negro trevas, negro solidão; o Mal com M de medo, com M de matar.