sexta-feira, 30 de abril de 2010

Oh senhor, francamente (parte 2)

Voltei.
Estou convencidíssimo que naquela repartição pública, fuma-se.
Eis que encontro a minha arqui-inimiga (na categoria de empregados do estado irritantes) ocupada com o cliente à minha frente. O primeiro da tarde!
-Este aqui é o senhor? Está muito diferente... Vai ter que me dar uma fotocópia do seu BI porque aqui tinha muito cabelo e agora nem vê-lo.
E de repente todos os restantes trabalhadores sentem uma série de afrontamentos e distraí-me com a confusão de ligar um ar condicionado. Virá-lo e revirá-lo, sobe escadote desce escadote, só porque no verão passado “estive o verão todo a antibiótico nos Covões por causa dessa porcaria. Não estou para isso!” e com isto perdi toda a conversa sobre dias úteis com o senhor de pouco cabelo.
-Sabe o que é que é? Não sei muito bem mas isto é calculado por eles... pelo computador. Se diz aqui que são estes dias úteis é porque são. Tem que cá vir noutro dia... Seguinte!
(aqui vou eu!)
-Boa tarde. Vinha levantar a minha carta.
-O que é que traz? Só isso? Hummm.. e já pagou? Traz o comprovativo?
-Não trago nada mas já paguei.
-Ainda não deve cá estar. Deixe-me aqui contar - enquanto, com os dedos, saltita de quadrado em quadrado do calendário de secretária contando 12 dias úteis. - Pois... se calhar já cá devia estar. Deixe-me procurar no monte.
(não encontra)
-OH ISABEL!? Tens aí a carta deste senhor?
-Qual é o nome?
-João ... (disse-o completo).
-Não, só aqui tenho duas.
E para isto não ficar muito extenso, a minha arqui-inimiga, vamos-lhe chamar... Gertrudes, procurou nos dossiers com todas as cartas ordenadas por ordem alfabética, voltou a chamar a Isabel que lhe voltou a responder:
-Só tenho aqui dois. Caraças que está cá um calor! Não dá por isto mais para cima de mim?
Deixando a Isabel e voltando-se ao deus todo poderoso, também conhecido por computador, eis que aparece a surpreendente informação de que a minha carta está naquela sala. Enviada e catalogada e arrumada, segundo aquele computador... na mesa da Isabel!
No cenário seguinte não me contive e tive mesmo que tapar a cara para não mostrar o meu divertimento. A Gertrudes, a Isabel e o... vamos lhe chamar António, a procurar o meu nome nos dossiers.
“Joao A a Joao D”
-Está procurar mal Gertrudes (não a tratei por tu mas fica melhor assim... shh). O meu nome está no dossier a seguir.
- Nunca se sabe. Pode estar mal arrumado.
- Eu procuro no José que é parecido, diz a Isabel.
- Eu verifico novamente no correcto, diz o António.
E 5 minutos depois, para grande surpresa da Gertrudes, o António encontra a minha carta no sítio dela. Devidamente catalogada e arrumada no dossier certo.
- Sabe o que é... também temos direito a falhar não acha? pergunta a Gertrudes.
- Claro! De vez em quando acontece... responde a Isabel.
António finaliza: – Desculpe o tempo que esteve à espera mas olhe, é como diz a física, tudo se perde nada de transforma.
Seguinte!

terça-feira, 27 de abril de 2010

Cobardes!

Somos os seres mais imperfeitos e escondemo-lo perfeitamente.
Crescemos a chorar, com medo, sem saber o que é o medo.
Nascemos com medo do escuro só para nos apercebermos que não é do escuro que temos medo, é do nada... do vazio e do ausente... do triste do só e dos outros. Temos medo de não ter e temos medo de perder. Chegamos até a ter medo de ser... só deixámos é de chorar.
Com os anos, passamos a fortes e conscientes, absortos do escuro e demasiado atentos a tudo para não ter medo. Sem medo!
Sem medo de estar, por isso não estamos, sem medo de viver e suicidamo-nos, sem medo de lutar, por isso fugimos, sem medo de dar e então guardamos. Tanto nenhum medo de ter qualquer medo, que não vemos que somos cobardes!

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Lamento mas não sou homem para ti...

...e lamento ainda mais se não for o teu homem.
É que não sei nada de bricolage, furos na parede ou canos estragados.
Pouco sei de fios e lâmpadas e a electricidade mete-me medo. Desligo-te o quadro se quiseres, mas preferia que chamasses alguém.
Como sabes, detesto bichos e uma pequena aranha tem o poder de me fazer saltar para cima de uma cadeira. Mato-te todas as melgas que desejares, mas mais do que isso, só de lata numa mão e vassoura na outra.
Se não te importares, não me peças para fazer o IRS ou tratar das contas. Eu lembro-te...
Não como muito ao pé de ti e talvez por isso não sou forte o suficiente para te pegar ao colo o tempo que gostava. Lamento mas só consigo uma volta e meia.
Apesar de saber fazer voz grossa pouco sei discutir como um homem deve saber.
Se tivermos um furo chamo o reboque e de mecânica o meu auge foi um carro da Lego.
Sou apartidário e a política pouco me importa. O país não está assim tão mal e Sócrates só o filósofo.
É vergonhoso que não te possa dar conselhos de economia e a engenharia que sei a ti não serve.
Espero que não te importes não gostar muito de futebol. Embora a mini seja indispensável na minha vida.
O meu carro está sempre mais sujo do que o teu.
Mal me sei orientar num supermercado e as compras que faço saem todas trocadas.
O que comeste feito por mim foi um erro ou uma sorte.
E se ficares doente telefono à tua mãe!
Lamento. Não sou homem para ti!
Pois não?

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Hoje não, mas amanhã quem sabe...

- Ainda nos vão fazer uma estátua, vais ver! Numa praça com o nosso nome, turistas virão só para nos ver de bronze. Seremos a casa banho dos pombos e o pano de fundo de uma moldura de sala. De noite estaremos iluminados pelos pés porque ainda vamos ser o marco de uma cidade. Vais ver, um dia, ainda nos vão fazer um estátua! Hoje não, mas amanhã, quem sabe...

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Oh senhor, francamente!

-Boa tarde.
-Boa tarde. Vinha levantar a minha carta.
-Só um momento que já o atendo.
-...
-Só traz isso? O que é que traz? Ainda não deve cá estar.
-Informaram-me que hoje já cá estaria.
-Quem é que o informou? Já passaram 8 dias úteis? Dê cá isso... Leia aqui: "...até 8 dias úteis..."! Vamos contar os dois: 1..2..8.
-Exacto. Hoje faz 8 dias úteis, por isso aqui estou.
-Oh senhor, ATÉÉÉ 8 dias úteis!
-De qualquer forma procure aí no monte se não se importa.
-Tiago?
-João...
-Filipe?
-João...
-Como é que se chama?
-João.
-Olhe! Veja aqui esta. Dia 10 de Abril! De 11 não tenho nenhuma! Tenho uma de 12 mas deve ser engano.
-Mas olhe que de dia 10 Sábado ou 11 Domingo até hoje, são os mesmos dias úteis...
-Oh senhor, francamente. Vou-lhe ali apontar para o calendário da parede e conte lá os dias.
(rio-me de forma contida)
-Não é preciso, de Sábado até hoje, são os mesmos dias úteis do que Domingo até hoje.
-Oh senhor, 'tá a ver este monte de senhas? São todas da manhã. Você é o primeiro da tarde. Quer-me estragar já a tarde?! Francamente!
-Deixe estar. Procure aí no monte novamente.
(enquanto procura, olhando para os papéis que folheia)
-Oh senhor, francamente.. Eu nem estou a perceber que raciocínio é que está a fazer.. Nem quero pensar muito nisso, mas oh senhor, francamente...

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Vago

No silêncio voltam as palavras. Volta o Gin. Voltam as vozes e volta o imaginário, mas pela primeira vez, preferíamos não voltar a escrever.
Na banalidade do nada quase perdemos tudo e não é um recado a quem não ouve nem uma lição de quem não sabe. É apenas a grande ausência de uma consciência entre muitas inconsciências de tudo. É uma trégua farta, um cansar de rastos, um esgotar exausto e um gritar insonoro. É um pedido de ajuda e um esticar de mão. Uma bóia para quem não nada e um tónico para quem não dorme...
Se o vago é vagamente incompreendido, o concreto não chega.
.Não percebo...
,Nem eu...
Deixamos estragar o que não se aproveita e deitamos fora só porque já não serve. Mas o mundo não é verde e a reciclagem só é tricolor. Quando a é. A sucata está cheia e fazemos mais lixo do que nós. Crescemos os sujos que se limpam a toda a hora. Crescemos iguais e somos a moda. Vemos por um canudo alheio a vida dos outros e inspiramos o pútrido ar da regeneração.
.Continuo sem perceber
,Nem eu...
Vivemos para o amor e amamos o nada. Queremo-nos a nós de uma garfada e aos outros em degustação. Sorvemos a vida num beijo para fechar os olhos ao impossível.
,Lutemos então!
.Reciclemos.
De Gin ou de bóia, diferentes ou na moda, não importa!
Desde que não vagueemos. 

terça-feira, 20 de abril de 2010

Ele e Ela


Acabou a música e a comida. Pior, acabou o vinho.
Ele, embriagado mas não pelo vinho, fixa-se nos seus magníficos olhos castanhos, naqueles olhos cor de felino, sem nunca se aperceber que isso a assustava, até a ouvir perguntar num rugido quase a medo – Que foi?!
Ela, sempre sedutora e provocadora, levanta-se da mesa a dois, saindo lentamente da sala de jantar, virando-lhe as costas dissimuladamente sem interesse mas com um sorriso nos lábios que ele não via. Passeia-se pela casa, aparentemente indiferente e atarefada com a vida que não era a dele.
Ele, agora sentado no chão comodamente revestido, ouve ironicamente a See-Line Woman da Nina vendo-a a duas cores e sorri também por isso. Sorri pela coincidência e pela conjectura daquela música. Esquece tudo, aumenta o volume e deseja, repetidamente, vem-te passear para este chão e vem ouvir a minha música!
Ela, sentindo-o demasiado quieto, aproxima-se silenciosamente dele e fica a olhá-lo, observando-o, sentado a dançar e a sorrir. Chega-se mais perto, como uma leoa na sua própria savana, examinando não a presa mas um cenário. Denuncia a sua presença.
Ele, sem tirar o sorriso estampado, vendo-a já junto a ele a aproximar-se, descendo sobre si, acompanhando-o no seu desejo repetido de então, estica-lhe a mão num abraço e sente-a junto dele.
Ela, sem resistir, deixando-se domar, entrega-se sem querer combater aquele sentimento de entrega e descoberta e cai rendida ao mesmo tempo no seu peito e no seu colo.
Ele, envolvendo-a nos seus braços, olhava para a Nina, vendo os seus olhos de uma inexpressão imutável, naquela ausênsia de sentimento com que contrasta o seu cantar, naquela magia com que a Nina envolvia a sala ao dizer, Be My Husband, e pede-a mais uma vez em casamento.


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Imponderável

Dizemos,
Desfazemos,
Matamos e
Atropelamos.
Ouvimos o desagradável,
Vemos o impensável
Fruto do imponderável!
E o que mais me toca,
Não foi como ela o coloca...
Foi como ele justaposta,
Aquela maravilhosa resposta!

(tudo em: )

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Nocturno

Levantou as golas do blusão de cabedal e avançou pelo passeio, ouvindo o eco dos seus passos nos portais vazios. O tráfego era diminuto e só de vez em quando os faróis de um automóvel a iluminavam por trás, projectando a sua silhueta comprida e estreita, primeiro alongada à frente dos pés e depois mais curta, oscilante e fugitiva para um dos lados, à medida que o ruído do motor aumentava atrás de si até a ultrapassar, esmagada e desaparecida a sombra contra a parede, enquanto o carro, agora dois pontos vermelhos e outros dois reflectidos sobre o asfalto molhado, se afastava rua acima.
Deteve-se num semáforo. Enquanto esperava o verde, procurou outros verdes na noite e encontrou-os nas luzes fugidias dos táxis, em semáforos ao longo da avenida, no néon distante, combinado com o azul e amarelo, de uma torre de vidro em cujo último andar, de janelas iluminadas, alguém fazia a limpeza ou trabalhava àquela hora. O verde acendeu e atravessou, procurando agora vermelhos mais abundantes na noite de uma grande cidade; mas interpôs-se o lampejo azul de um carro da polícia que passava ao longe sem que chegasse a ouvir a sirene, silencioso como uma imagem muda. Vermelho automóvel, verde semáforo, azul néon, azul lampejo... Essa seria a gama de cores, pensou, para interpretar aquela estranha paisagem, a paleta necessária na execução de um quadro que poderia ironicamente chamar-se Nocturno e seria exposto na galeria Roch. Tudo adequadamente combinado com tons de negro: negro escuridão, negro trevas, negro medo, negro solidão.
Tinha realmente medo? Noutras circunstâncias, a pergunta teria sido um bom tema de discussão académica, na agradável companhia de alguns amigos, numa divisão cómoda e aquecida, em frente de um fogão e com uma garrafa ainda a meio. O medo como factor inesperado, como consciência perturbadora de uma realidade descoberta num momento concreto embora sempre ali tivesse estado. O medo como final demolidor da inconsciência ou como ruptura de um estado de graça. O medo como pecado.
No entanto, caminhando por entre as cores da noite, era incapaz de considerar o que sentia como uma questão académica. Já sentira antes, como é óbvio, outra manifestações menores do mesmo: o conta-quilómetros que ultrapassava o razoável enquanto a paisagem desfila rapidamente à direita e à esquerda e o risco intermitente do asfalto parece uma sucessão de balas de metralhadora, como nos filmes de guerra, engolidas pelo ventre voraz do automóvel; ou a sensação de vazio, de profundidade insondável e azul ao mergulhar da coberta de um barco no alto mar e nadar, sentindo a água escorregar sobre a pele nua, com a desagradável certeza de que qualquer espécie de terra firme está demasiado longe dos pés; até mesmo outros terrores vagos que fazem parte de nós mesmo durante o sono, estabelecendo caprichosos duelos entre a imaginação e a razão, aos quais, regra geral, basta uma acto de vontade para reduzir à recordação ou ao esquecimento com um simples abrir de pálpebras para as sombras familiares do quarto.
Mas aquele medo que acaba de descobrir era diferente: novo, insólito, desconhecido até então, amadurecido pela sombra do Mal com maiúscula, inicial do que está na origem do sofrimento e da dor; o Mal que só pode ser pintado com negro escuridão, negro trevas, negro solidão; o Mal com M de medo, com M de matar.