quarta-feira, 30 de junho de 2010

És!

Respirei fundo para lhe confessar um pensamento, olhei-a nos olhos, abri a boca, que talvez julgando-se ouvido só escutava, mas nenhum som lhe saiu. Nada. Apenas um olhar cobarde de silêncio se mantinha. Improvisando, tomei-a rapidamente nos braços para que não me visse, para que eu não a visse e pudesse assim ganhar coragem e respirei novamente.
Acompanhavam-me agora os olhos molhados, certamente do calor, ou do cansaço da insónia daquela noite, e o silêncio deixava de se manter para se instalar.
Engoli em seco, e, finalmente, confessei-lhe: És a mulher mais extraordinária que eu conheço!
Hoje já é quarta e não me consigo esquecer dessa manhã...

terça-feira, 22 de junho de 2010

Almas de Terra Preta

Tenho um saco de almas que colhi do meu jardim. Aquele de terra preta onde nada cresce. Abafo-as de porrada naquele saco fechado sem ar onde não deixo nada sair. Nem uma alma daqui sai mas se saísse, saia negra, directa para o chão preto de onde nasceu. Lá dentro, existe a suspeita do nada fora do saco, de ser na sua essência que está a verdade do ser, mas quando parti o esmalte da força que fiz ao juntar os maxilares, rosnando o meu incompreensível, quando gritei os meus pulmões em sangue para a rua deserta, agarrando com toda a força o parapeito, arranhando-o enquanto ia plantando unhas demasiado crescidas, não senti dor e o saco caiu aberto. Vazio.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Cura do bem estar

Sentimos uma dor e uma raiva misturadas na mesma tristeza desta ferida que observamos.
Dor, nas palavras que sentimos nunca conseguir explicar, para explicar o sangue e a pele ferida. Sentimos a dor da dor, não a dor das palavras e isso não se explica, sente-se ou escreve-se, e também isso dói pela teoria de equivaler a álcool em ferida aberta, matando, desinfectando, mas nunca curando. Por isso dói. Mas dói muito mas ninguém vê ferida nem ninguém ouve dor. Mas não dói muito só na nossa teoria, que todos o somos, uns teóricos, não! Nem dói só na prática, que ninguém vê nem ninguém ouve. Não! Dói em tudo!
Raiva, pela constante dor, por fazer doer e por repetidamente olharmos a ferida de sangue e não pele. É a raiva da impaciência da dor e também esta não se explica, sente-se e actua-se como uma bússola irrequieta sem norte. Uma que não chega a buscar o norte, não sabe sequer do norte mas confunde-se pelo sul. Sente-se e actua-se aos círculos, tonta, de duplo sentido, tola, de sentido único, e cai-se. E quando procuramos e não vemos o chão caído, é esta a raiva que sentimos!
Tristeza, pela dor e pela raiva. Somo-la ambulantes, nómadas, vendendo tónicos milagrosos de raiva e dor. Somos mágicos, druidas de sono e cansaço, com a poção mágica da tristeza num frasco: Vende-se remédio! Não ingerir! Provoca mal-estar.
E bebemos e inquietamo-nos, aleijamo-nos e confundimo-nos e caímos e repetimos e curamo-nos!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

vinte e dois


- Flores? Atão? vais-te casar?
- Atão mas estive solteira até agora e era agora que me ia casar com esta idade?
- Se eu soubesse o que sei hoje na me tinha casado.
- Atão agora é que tá com essas coisas?
- Tanta velha rica e solteira pra í... e boas, tinha eu que estar assim. 21 anos casado pa isto. Se eu soubesse o que sei hoje... Isto tá bom é pá minha filha que diz tar lá com o amor.
- Ah home, atão isso quando na se tá bêm dorme-se separado
- Olha, é o que acontece muitas vezes! Quando tá muito calor...


...


- Vocês desculpem-me a conversa dá bocado. Na liguem ao que eu tava dizendo, pa vocês certamente na será assim.
- Não se preocupe, sabe o que dizem? Aos vinte e dois é que é!

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O cruzamento

Domingo. Seis da tarde no cruzamento. Dirijo-me à padaria que já não entrava há anos com o meu irmão, para estupidamente comprar o lanche antes da festa. Está uma calmaria anormal, mesmo para um Domingo. Agora que penso, chamar-lhe-ia abandono. Não há carros nem pessoas, não há nada. Apenas eu, o meu irmão, o saco do pão, o nosso carro e as senhoras de aparente idade avançada a tomar um chá. É então que no meio do abandono, num intenso silêncio, por entre uma temperatura fantástica, na esquina do cruzamento, dentro da velha cabine pré-paga que lá se encontra há mais anos do que eu cá, vários quilos excessivos de cabelo oxigenado que mal cabem lá dentro, gritam em plenos pulmões, o mais alto que parecem poder:
- oh chico, vai pó caralho!
E desligam o telefone na cara do Chico, castigando violentamente o auscultador.
Neste momento, pareceu-me que o abandono envolvente cresceu ainda mais, e quase que juro ter ouvido o eco das duas últimas palavras por todo o cruzamento durante algum tempo. Depois pensei o quão espantosa é a durabilidade destas cabines, mais propriamente, destes auscultadores que tantas despedidas a chicos devem ter feito...