quinta-feira, 23 de junho de 2011

mulher fatal




É uma noite quente, sufocante e sem vento. Daquelas noites que levam as pessoas a fazer coisas secretas, suadas. Eu espero. E escuto. Por momentos tudo fica tão silencioso quanto é possível em Sin City. Coiotes uivam nas colinas. O ruído das sirenes da polícia eleva-se no ar, antes de ser abafado pelo rugido surdo do tráfego. Começo a ficar com a perna direita dormente e penso em descer as escadas e recuperar o dinheiro com que subornei o porteiro, quando ouço o ruído das chaves na fechadura e eles entram...

- Esta é a última vez, Sally. Tem de ser a última vez!
- Como quiseres, Joey.
- Desta vez é a sério!

Ela desliza para fora do casaco como quem desembrulha um presente lentamente, para exibir o material. E que material! Tem um corpo capaz de despertar um morto. A voz é que estraga tudo. Uma vozinha aguda, de menina mimada. Açucarada e cheia de falsa inocência.


- Sonhei contigo ontem à noite, Joey. Foi um belo sonho. Queres que to conte?
- Hoje não tenho tempo para sonhos. Não tenho muito tempo. Tenho que voltar para casa cedo. Esta é a nossa última vez. Não posso continuar a correr riscos destes.
- Como quiseres, Joey. Tu mandas. Tu é que és o chefe.

Ele acrescenta mais uma boa meia dúzia de sílabas a "chefe", assobiando o fff final como uma profissional. Isso basta para deixar o idiota a arfar.


- É essa maldita da Glória. Não pára de me fazer perguntas. Aposto que suspeita de alguma coisa. Se me levar a tribunal fica-me com tudo!
- Tudo o que tu trabalhaste tanto para ganhar.
- Tens toda a razão. Trabalhei como um cão. Trabalhei a vida toda, noite e dia. Anos e anos. Construí um negócio do nada. Do nada!
- E ninguém dá valor ao teu esforço, Joey? Não como tu mereces.
- É isso mesmo. Ninguém! Nem os meus empregados, que se não fosse eu, andavam a pedir nas ruas e muito menos a Glória, grande puta! Vive na casa que eu lhe comprei, veste as roupas que eu lhe paguei com o dinheiro que custou a ganhar e não dá o mínimo valor ao meu esforço!
- Nem sequer se dá ao trabalho de tentar perceber a pressão a que estou sujeito. Nem sequer tenta! Maldita! Sempre em cima de mim, sempre com exigências. Nunca me deixa respirar tal como todos esses preguiçosos que não receberiam o ordenado se eu não lhes assinasse os cheques... Eles podem adoecer, mas eu? Nem pensar!
- Isso é porque tu és forte.
- PODER CRER QUE SIM! MAS ALGUÉM RECONHECE ISSO? NÃO! SÓ ME QUEREM EXPLORAR! UM DIAS DESTES DESPEÇO-OS A TODOS! MOSTRO-LHES QUEM É O PATRÃO. MOSTRO-LHE QUEM É QUE MANDA!
- Podes mostrar-me a mim, Joey. Podes mostrar-me quem é que manda.
- Eu vou-te mostrar... vou-te mostrar quem é que manda...

Então ela começa a gemer e a chamar-lhe chefe enquanto ele grunhe. A coisa termina depressa.
Já tenho tudo o que precisava. O mais triste é que algumas das fotos que tirei estão muito boas.


- Oh meu deus Joey. Foi fantástico. Fizeste-me sentir como uma mulher. Sei que soa foleiro, mas é verdade. A mais pura das verdades. Só um homem a sério faz uma mulher sentir-se assim.
- Amo-te, miúda. Sabes bem que te amo.
- Também te amo, Joey. Tu és tudo o que sempre quis num homem. Conto os minutos quando tu não estás. É a pura verdade! Começam-me a doer os pulsos. Podes-me passar as chaves das algemas. Estão na minha bolsa.
- Nem imaginas o quanto eu te amo! Quanto me tenho sacrificado. Quanto isto me custa...
- Joey... que estás a fazer?!
- Isto está a dar cabo de mim! Amo-te tanto... Mas tenho que o fazer! Trabalhei muito para chegar aqui! Como um cão! E a Glória vai ficar com tudo! A culpa é dela! Não tenho alternativa!
- Não, Joey! Por favor. Não digo a ninguém. Juro por deus!
- Eu sei que tu não queres falar, Sally, eu sei disso...
- Joey... suplico-te, querido...
- Não tornes isto mais difícil, puta de merda!
- Ninguém mata ninguém. Pelo menos à minha frente.
- MATA-ME JÁ ESSE CABRÃO!
- *WHUDD*


"Então, dás-me boleia?" pergunta ela na sua verdadeira voz, uma que há muito perdeu a inocência. Pego na chave e tiro-lhe as algemas. Servem para prender o outro palhaço até chegar a mulher da limpeza. À saída, ela dá-lhe um pontapé de despedida que lhe vai doer depois de acordar.
Apanho a estrada para El Redondo ao longo da colina até à cidade velha. É o caminho mais longo mas, da maneira como ela treme, imagino que este passeio só lhe fará bem. Ao princípio, o mais que ela consegue fazer é soluçar, assoar-se e fumar. Fuma-me seis cigarros. Quando ela estava a começar a acalmar, uma loura cheia de pressa quase que nos atira para a valeta. A pobre da Sally quase morre de susto. Aquela vaca conduz como se tivesse o diabo a persegui-la. Deve ser louca. Nunca há justificação para exceder os limites de velocidade.


- Obrigada por me salvares a vida, amigo!

Ela arranja a maquilhagem e afasta-se num passo sedutor enquanto acena um adeus e lança uma piscadela de olho cúmplice. Uma puta para outra. Foi a última coisa que vi dela antes de submergir no mar de carne da cidade velha.

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