quinta-feira, 27 de outubro de 2011

المغرب‎ - Sahara (parte 2)

Eu, que não acredito na perfeição e raramente uso a palavra, senti neste momento, um momento perfeito. Um momento em que não havia nada para dizer senão escutar. Um momento que me aquecia tanto como o chá. Um momento, que só por ser aquele momento, perfeito, me fazia sorrir. Aqui não há nada, por isso, não se pensa em mais nada. Aqui, pensa-se no que se vê: aqui moram mais estrelas. E no fim deste momento, conversa-se sobre tudo isto.
Hakim presenteia-nos com algo completamente diferente: arroz com tomate e ervilhas de uma qualidade estranhamente elevada. Novamente, não pedíamos mais. Por nós, era aquele O jantar, mas refeição que é refeição tinha ter Tagine de frango. E porque tudo era diferente, ao melão acrescentou laranja e foi tocar djambé ao som reggae da minha melhor escrita Berbere: "Oh saramáá, oh saramÁÁÁ, oh sARAMÁÁÁÁ!". Resolvemos rodear Hakim e o tímido amigo que o acompanha com as lanternas de velas espalhadas, para que nos pudéssemos juntar.
Tratando-se de um país muçulmano, onde o álcool praticamente não existe, não resistimos em comprar no aeroporto uma garrafa de whisky para a viagem. Este era o momento de a saborear. Enquanto bebia pela primeira vez com gosto um whisky, quente, sem gelo, Hakim pergunta-me o que bebo. Não ofereço por ter medo de ferir susceptibilidades culturais mas Hakim é diferente de todos os outros árabes até então e oferece-se para provar. De um trago, bebe todo o meu copo de whisky, engelha todas as rugas da cara e após uma falta de ar que lhe vem de uma convulsão no peito, dirige-se a Muhammad, o seu amigo, naquilo que me parece ter sido uma série de sonoros praguejares. Muito forte!, diz no final.
Hakim apenas arranhava o espanhol, mas preferia-o ao seu francês fluente. Queria treinar. Perguntamos-lhe como aprendeu.
- Com a escolha da vida, responde, colocando-se numa postura mais sábia.
Este é o único momento que Hakim não está a brincar, a ser engraçado ou a ter piada.
- Há dois tipos de pessoas: abertas e fechadas. Há quem venha aqui e vá dormir. Há quem venha aqui e fique, e converse, e cante... portugueses, italianos e espanhóis... tudo o resto não interessa, diz sério.
Perguntamos-lhe se conhece outros países. Esteve de passagem em Espanha. Quem sabe, um dia podes ir a outros sítios, sair daqui, conhecer o mundo.
- Nasci no deserto, vou morrer no deserto.
- Não sabes. Quem sabe um di...
- Nasci no deserto, vou morrer no deserto!
E termina com esta frase o único momento sério. Depois cantamos, conversamos, tocamos, tornamos a cantar, partilhamos e o Pedro improvisa o acompanhamento com uma guitarra. Ás 5h é o despertar para ver o nascer do sol, por isso, ás 23h achamos que o Hakim está cansado e deixamo-lo ir dormir.
Para nós ainda não é hora e decidimos ir caminhar pelo deserto nocturno. Uma lanterna à porta do acampamento e uma outra para nos iluminar o caminho e traçamos como objectivo a silhueta da duna mais alta. No deserto, parece existir sempre uma duna mais alta que a anterior e a porta do acampamento é agora um pequeno ponto longínquo de luz. Finalmente, num consenso de altura, como se quiséssemos (e conseguíssemos) observar a paisagem do alto da noite, sentamo-nos no topo da duna mais alta. Este é o momento mais perfeito do deserto. Esta é a definição de ausência de som, pois é aqui que o silêncio toma outro significado. Só um poeta talvez o conseguisse definir. O silêncio do deserto é ouvir apenas o vento que nada traz com ele. Foi quando decidimos voltar que reparamos na porta do acampamento. Tinha-se apagado. Felizmente o deserto tinha memorizado os nossos passos e voltámos, de olhos no chão, repisando as mesmas pegadas até chegarmos aos nossos aposentos, para finalmente dormir.


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