terça-feira, 13 de julho de 2010

"Já passou, ainda não passou"

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Mas aí a meio do Mundial, aconteceu uma coisa horrível. Estava a almoçar com a minha mulher na praia - um tempo sagrado, só nosso - e, de repente, dei comigo a fazer-lhe perguntas de futebol.
O pior é que, antes de dar por isso, ainda fiz três ou quatro. E ela, que partilha o meu grande amor por tudo o que tenha a ver com bola, lá foi respondendo. Devemos ter conversado sobre o Mundial durante quatro longos minutos - e eu estava interessado na conversa.
E se não fosse a expressão aflita e estupefacta da Maria João - como se estivessem a crescer-me malmequeres das orelhas - eu nem sequer teria caído em mim.
Tinha sido contaminado pelo futebol. O futebol tinha saído da jaula fortificada onde eu o guardo e tinha conseguido invadir o jardim maximum security da minha vida.
A minha mãe já me tinha avisado. Quando nós éramos pequeninos e ela passava tempo de mais connosco, falando criancês - aquela língua delicodoce e cheia de diminutivos que os pais usam para dar ordens e ensinar coisas aos filhotes -, acontecia-lhe continuar a usar a mesma língua quando estava com adultos.
Durante um cocktail, aconselhava um comodoro americano que acabara de lhe ser apresentado a "não vai beber esse uisquizinho todo de uma vez, pois não? Parece muito bom e fresquinho, cheio de pedrinhas de gelo, mas o álcool faz mal ao figadozinho! E nós não queremos que isso aconteça com o comodoro, pois não? Não! Claro que não queremos, porque o comodoro é um bom comodoro e quer um dia ser almirante, não é?"
No criancês, o adulto geralmente responde às suas próprias perguntas e à criança cabe fazer que sim ou que não com a cabeça.
O futebolês não é muito diferente. Pergunta-se: "Achaste que foi fora-de-jogo?" E segue-se logo com a resposta: "Aquilo nunca foi fora de jogo!" (O futebolês é tão exageradamente agressivo e discordante como o criancês é ternurento e unanimista).
É muito perigosa esta contaminação cruzada. Todas as línguas infectadas ficam a perder. Um exemplo contemporâneo é a contaminação cruzada da língua amorosa com a língua amistosa ou social. Chama-se "meu amor" aos cabeleireiros: "Despacha-te, meu amor, que eu estou super-atrasada."
Quando "meu amor" é para toda a gente, todas as palavras do vocabulário amoroso são despromovidas. "Querido" já se usa como palavra agressiva: "Ó meu querido amigo, se você não tira já daí o carro..."
Na Inglaterra, love you! já se usa mecanicamente ao telefone, para indicar o fim de uma conversa. Em Portugal, ainda não chegámos a esse ponto, mas já se diz "amo-te" com grande ligeireza, no sentido de "obrigado!" ou "fizeste exactamente o que eu queria - obrigada!"
Diante esta apropriação, o amorês é obrigado a carregar-se de bagagens suplementares. Se "amo-te" não quer dizer nada, é preciso acrescentar: "Amo-te. Mas é a sério. É amor mesmo; amor verdadeiro." O que estraga tudo, claro.
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by Miguel Esteves Cardoso
in Público 12/7/2010

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