Como é que se diz a um irmão que o seu irmão acabou de morrer. Com que frieza se engole em seco e se diz, o tio morreu. Com que forças para não chorar o mundo num rio se consegue aguentar, quando nos pedem para repetir, porque não ouviram, porque não podem ter ouvido, porque o que parece terem ouvido é impossível, porque é do mais novo de 5 que fala, o último e, por isso, também será sempre o último a ir. O tio morreu. Se tivesses largado uma lágrima não teria tido força para mais nada senão ficar imóvel a ver-te. Se calhar, é de ti a força que se instala nesta garganta que engole em seco, a mesma força com que informo a minha mãe, a força que a minha mãe não tem porque me pergunta mais vezes o que acabei de dizer, e repete, e me pergunta o que lhe acabei de dizer, a força que não tem porque a perdeu toda naquele instante, porque também ela não percebe nem acredita. Mas foi a tua força que quebrou mais tarde o silêncio. Eu, que nunca me calo mas tanto gosto da ausência do som, nunca um silêncio me calou tanto.
Como é que se perde um tio sem se pensar num pai. Como é que se perde um pai sem se pensar num pai. Como é que se pensa quando se perde um marido e como é que se entende quando ninguém explica porque é que acontece o que acontece. Como é que tens tanta força junta para conseguires a ousadia de te sentares assim nesse sofá, com essas lágrimas de coragem.
Voltou a ser natal: todos. Menos um.
"Um choque"; "Não valemos mesmo nada"; "Foi como ele queria que fosse". Mas eu não sei dizer essas coisas, nem sei chorar à frente dos outros. Não foste tu que me ensinaste que mais vale fugir para um canto, mas foi contigo que aprendi a desaparecer para a sombra mais densa de um cedro, para um escuro alheio do mundo e, principalmente, de todos. Esconder um rio de mãos tapadas e voltar a ser uma barragem. Foi só um pequeno riacho, não te preocupes e só nós os dois é que sabemos isso.
O mundo não parou mas o tempo não passa e despedimos-nos, um de cada vez, no desconforto da incerteza do dia certo do regresso, mas na única certeza que não cabe cá dentro de tão certa: tio morreu.